17 de set. de 2013

Ele ou ela? A vida de preconceitos e dificuldades enfrentados pelos homens trans

E se fosse o contrário? Se o ultrassom não antecipasse nada e no momento de registrar o filho recém-nascido você não precisasse especificar o gênero sexual. Deixasse em branco. Ou melhor, deixasse a definição para o seu filho. Na Austrália e Nova Zelândia há tribunais que reconhecem essa escolha e que revogaram norma que obrigava cidadãos a serem registrados como pertencentes ao sexo masculino ou feminino. Na Alemanha, em novembro próximo, os pais também poderão deixar a certidão em aberto em determinados casos. No Brasil há um projeto de lei em tramitação do deputado federal Jean Wyllys que determina que toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua identidade de gênero sem precisar provar nada. Basta ir ao cartório e pedir a mudança em seu registro. Ainda engatinha. A mineira Tereza Brant, 20, quer ser definida como pessoa. Desde criança sentia-se diferente, desconfortável com a aparência feminina. Arrancava a cabeça de suas bonecas para fazer de bola. No início deste ano, veio a mudança radical – com a hormonioterapia nasceu outra Tereza – dentro de um corpo masculino com músculos, voz grave, pelos. Tem arrancado suspiros. Mas Tereza faz questão de continuar a ser Tereza. Não oculta para os que veem primeiro sua aparência, que é uma mulher. Mudança a médio prazo só uma cirurgia para extirpar os seios. Certeza é a de que terá de tomar hormônio para o resto da vida para continuar com o corpo que gosta cada vez mais. Tereza prefere não se rotular, mas é impossível não comparar sua história com as de outras pessoas que fizeram o mesmo caminho – só que essas fazem questão de se definirem como homens trans – como são chamadas aqueles que nasceram com o sexo feminino, mas que sentem que seu gênero é masculino. Eles mostram em suas histórias como é viver com a identidade trocada e como é fazer a transição em que corpo e autoimagem finalmente se equilibram. Tereza diz que não sentiu nenhum preconceito com sua mudança. No Facebook é seguida por quase 70 mil pessoas, todos os amigos respeitaram sua decisão, tem namorado as garotas que quer. O pai, a princípio um pouco reticente com a mudança da filha, está apoiando essa nova fase. A mãe desde sempre foi a melhor confidente. Para os que têm dificuldade ela abre precedentes – podem chamá-la de Tetê, Brant, Bernardo. “Meus amigos me tratam do jeito que se sentirem bem. Outro dia, fui à casa de um deles, que me apresentou à sua avó. Até explicar tudo, ele preferiu me apresentar como Bernardo”, conta. Ultimamente, para evitar confusões, tem frequentado os banheiros públicos masculinos. Encara tudo como se fosse uma grande brincadeira. Na verdade, confessa que nunca esteve tão feliz. “Estou muito bem, me descobrindo.” Tereza não quer mudar de nome, nem tampouco fazer mais intervenções no corpo. Classificações quanto a si mesma? Tem pavor. “Se fosse o contrário, teria mudado meu nome. Cada um tem que ser cada um.” Para o escritor João W. Nery deixar Joana, como foi batizado, para trás, não foi tão fácil. Ele que hoje tem 63 e fez sua cirurgia aos 27 anos, de forma clandestina, de acadêmico passou a, oficialmente, analfabeto. Joana era formada em psicologia e lecionou em três universidades. Se atualmente é difícil fazer um novo registro, imagine quando a mastectomia e histerectomia, cirurgias às quais Nery se submeteu, eram consideradas mutilação de humanos. Sem poder usar sua identidade, se registrou novamente. João foi taxista, pedreiro, massagista de shiatsu, cortador de roupas. Em seu livro Viagem Solitária, ele define como se sentia na época: “Era como se quisesse dizer a todas as pessoas que o meu físico não era aquele, ou melhor, fazê-las entender que meu corpo mentia contra mim”. Hoje, a mastectomia para retirada dos seios, e a histerectomia, de ovários, trompas e útero, são realizadas pelo Sistema Único de Saúde mediante acompanhamento de dois anos por uma equipe multidisciplinar já que a transexualidade é considerada uma condição de patologia psiquiátrica. Na França, Argentina e Suécia, ser trans não é mais uma doença. Para os trans essa patologização é uma violência de gênero, é negar não só o direito de a pessoa ter autonomia sobre si, como também impor um padrão do que é ser transexual verdadeiro daquele que não é. “Patologizar é retirar a nossa dignidade”, observa o presidente da Associação Brasileira de Homens Trans, Léo Tenório. Sem contar que o processo de transição para a cirurgia pode ser muito demorado – entre a primeira consulta até o final do processo, pode-se levar seis anos. Esse é um assunto que tira qualquer trans homem do sério. Nery afirma que qualquer pessoa que saia do binarismo homem, mulher, se torna invisível, abjeto para a sociedade. O paradoxo, para ele, está justamente no fato de vivermos numa época em que a cirurgia estética chega às raias do excesso e pode ser feita por qualquer um, menos pelos trans. “Para conseguir o laudo, a pessoa tem como obrigatoriedade passar 24 horas do dia vestido de acordo com o sexo em que se identifica. Isso sem ter feito cirurgia ou hormonoterapia. É pagar mico, ou melhor, é jogar os cristãos aos leões”, diz Nery. O mais difícil é saber que o que se está tentando provar sempre fez parte da sua vida. Tereza conta que desde criança se sentia desconfortável com a aparência feminina. Já nas lembranças de Nery, jipes, bolas, bolas de gude sempre povoaram sua infância como suas brincadeiras e presentes preferidos. Era chamada de menina, mas se sentia um menino. Para ficar confortável, inventou uma brincadeira com a irmã em que passariam a se chamar Zé e Zeca, que eram dois viúvos cheios de filhos – representados por suas bonecas. O que para a irmã era uma diversão passageira passou a ser a válvula de escape para que Nery fosse tratado no masculino. “Tentava convencê-la de que a brincadeira era mais importante do que a realidade, muito chata”, relata em seu livro. Voltemos ao ultrassom do início da matéria, o aparelho que antecipa para os pais o sexo do futuro filho. Nascer macho ou fêmea faz com que qualquer um assuma a identidade masculina ou feminina, respectivamente? Impossível determinar. Para o psiquiatra e psicanalista Stélio Lage a relação do homem com a identidade de gênero não é dada, ela é o produto de uma construção, que antecede até mesmo o nascimento do futuro ser. Ela está na construção simbólica que esses pais fazem e das escolhas para o futuro bebê que vão da predominância de coisas simples como cores até traços pessoais sonhados que vão impondo características para o filho. “Não digo que essa dimensão forçada que antecede aquele que depois vai assumir uma identidade, ou outra, esteja contida necessariamente nos pais, mas passa por eles, como também no discurso familiar, ao exigir daquele que nasce uma determinada opção”, diz. Mas o tempo trata de ajustar o sonhado e o real. P, 27, artista plástico, se sentia diferente no corpo de menina. Não se sentia lésbica. Em seu imaginário infantil, o grande sonho era se tornar um adulto quando seu corpo deixaria as formas femininas para assumir, naturalmente, as características de um homem. O problema veio com a adolescência e o crescimento dos seios. “Só andava encurvado, para escondê-los. Nesse momento, a gente passa a se sentir fraco.” Começou a pesquisar e parou justamente na transexual mais famosa no Brasil, Roberta Close, mas o susto viria em seguida. Ele descobriu o ator Buck Angel, um trans homem que atua em filmes pornôs. “Não sabia que existia o contrário.” Foi a libertação. Preparou-se e há um ano e meio pagou 6,5 mil reais para fazer a mastectomia. “Alívio enorme porque podia vestir a roupa que quisesse.” Na mesma época, começou a fazer a hormonioterapia. Agora, P. também quer passar pela histerectomia, mas antes planeja congelar seus óvulos para ter filho com a namorada, que é uma trans mulher. “Nunca seria um homem grávido, mas gostaria de ter um filho na barriga de outra pessoa.” Também pretende fazer a neofaloplastia, cirurgia para a construção de um pênis formado a partir da pele de outras partes do seu próprio corpo. Essa é considerada uma cirurgia experimental no Brasil e só pode ser feita por determinados hospitais universitários. Como P. tem vários amigos principalmente na Alemanha, onde a cirurgia é considerada bem-sucedida, sonha em juntar dinheiro para realizar essa que seria o ponto final em sua transição. Enquanto isso, luta aqui no Brasil para mudar o seu nome e burlar a falta de identidade oficial. Ele trabalha como free lancer. “Estou com um projeto de criação de um site, que será lançado em breve em São Paulo, para captar empregos para trans, que têm muita dificuldade em conseguir trabalho.” São dificuldades que já fazem décadas e, apesar do avanço em alguns pontos, a impressão para Nery, por exemplo, é que o preconceito e a discriminação pararam no tempo, não só quanto ao avanço de leis, de novas formas de relações sociais mais abertas, como também de estudos para a evolução de tratamentos e cirurgias, que eram e continuam sendo consideradas experimentais mesmo depois de mais de 30 anos de sua transição. “Vivemos hoje em uma ditadura heteroterrorista, porque qualquer um pode te humilhar, desrespeitar quando quiser e, se for denunciar, ainda vamos enfrentar a homofobia. Nossa sociedade é despreparada.” João Nery se casou quatro vezes, tem um filho – que só por acaso não é biológico, porque ao falar da relação dos dois, sente-se o respeito e o amor mútuos. Escritor, também tem um perfil no Facebook para divulgar tudo o que pode sobre a diversidade e os direitos humanos. É um cidadão com dupla identidade – a de Joana, a psicóloga e professora, que já não lhe serve para nada, e a de João, um sujeito analfabeto. Nesse meio tempo, escreveu dois livros, Erro de Pessoa e Viagem Solitária. Promete entrar na Justiça quando todo mundo puder trocar o nome. Em sua homenagem, Jean Wyllys nomeou seu projeto de lei de identidade de gênero como lei João W. Nery. Se aprovada, a identidade de gênero passa a ser entendida como a vivência interna e individual do gênero tal como cada pessoa o sente, o qual pode corresponder, ou não, com o sexo atribuído após o nascimento. Nery, nos últimos anos, sofreu infarto, tem artrose e também teve que colocar quatro próteses no fêmur. Não há estudos definitivos, mas tudo pode ser consequência da hormonioterapia com testosterona. “Tudo são hipóteses”, diz. Mesmo com dificuldades de se locomover, afirma que quer ser a pedra no sapato, incomodar. “Faço questão de ser um homem trans feminino, de mostrar que existem outras formas de ser, além de homem e de mulher.” FONTE:http://www.revistaviverbrasil.com.br/159/materias/01/capa/ele-ou-ela/ (PARABÉNS PELA LINDA MATÉRIA).

Nenhum comentário:

Postar um comentário